Coleção Geyer – Museu Imperial
Em cartaz de 22 de maio a 15 de janeiro de 2023
Uma outra visão sobre o Brasil do século XIX
Johann Moritz Rugendas, Emil Bauch, Thomas Ender, Friedrich Hagedorn, Eduard Hildebrandt e Augusto Müller são alguns dos artistas e cientistas germânicos que registraram a paisagem humana e natural do país
Em 1999, o casal Maria Cecília [1922–2014] e Paulo Geyer [1921–2004] doou ao Museu Imperial, em Petrópolis, no Estado do Rio de Janeiro, sua coleção de arte e a casa que a abriga, no bairro carioca do Cosme Velho. Em 2014, a Coleção Geyer foi tombada pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), tornando-se Patrimônio Cultural do Brasil. O conjunto era considerado a maior brasiliana em mãos particulares do país.
A partir desta coleção preciosa de 4.255 pinturas, gravuras, desenhos, mapas, livros de viagem e objetos, os curadores Maurício Vicente Ferreira Júnior, diretor do Museu Imperial, e o historiador de arte Rafael Cardoso selecionaram 200 obras, para reconstituir parte da contribuição germânica [alemães, austríacos e suíços] à formação cultural do Brasil do século XIX, completada por peças do acervo do Museu Imperial e itens emprestados da coleção particular de Flávia e Frank Abubakir.
Nasceu, assim, a mostra O Olhar Germânico na Gênese do Brasil, em cartaz a partir de sábado, 21 de maio de 2022, às 19h, no Museu Imperial, sob patrocínio da Unipar, através da Lei de Incentivo à Cultura.
“Ao contrário do que preconiza o senso comum, que costuma enfatizar a relação com a França, a participação de artistas de língua alemã foi intensa e constante ao longo do período, desde as missões científicas dos anos 1810 e 1820 até a influência mítica do pintor Georg Grimm na década de 1880, passando por empreendimentos litográficos e fotográficos importantes como a Casa Leuzinger. A exposição recupera o legado desses artistas através das obras de Thomas Ender, J.M. Rugendas, barão de Löwenstern, Ferdinand Pettrich, Augusto Müller, Friedrich Hagedorn, Eduard Hildebrandt, Franz Keller, Ernst Papf, Emil Bauch, entre outros, oferecendo uma visão nova e vibrante do Brasil numa época formativa para a ideia da nacionalidade”, declara a curadoria.
Cena política internacional
As relações com os países de língua alemã antecedem o Brasil independente e a existência de Alemanha, Áustria e Suíça como Estados-Nação modernos. Foi no século XIX que os dois universos culturais se aproximaram. Com a derrota definitiva de Napoleão Bonaparte, a ordem política internacional começou a se redesenhar no Congresso de Viena, em 1814-15. Foi ali que o Império Austríaco e o Império Português, então sediado no Rio de Janeiro, começaram a firmar uma aliança estratégica – expressada pelo casamento do príncipe D. Pedro de Alcântara com a arquiduquesa Leopoldina, filha do imperador austríaco Francisco I, em 1817.
A comitiva que acompanhou a futura imperatriz em sua vinda ao Brasil incluiu os naturalistas Johann Baptist von Spix e Carl Friedrich Philipp von Martius, incumbidos pela Academia de Ciências da Baviera de realizarem longa viagem de pesquisa pelo país. Trocas efetivas se ampliaram a partir de então.
A exposição
O Olhar Germânico na Gênese do Brasil está dividida em núcleos que contemplam os temas: Rio de Janeiro à vista – pinturas de paisagem com temática do RJ; Retratos da vida da corte – retratos de notáveis do Império; Olhar a gente brasileira – obras com figuras anônimas, a maioria aquarelas e desenhos; Imaginar o Brasil – livros e estampas litográficas relacionadas a vistas e viagens pelo país, e O olhar do colecionador, instalação com imagens e objetos da Casa Geyer.
Rio de Janeiro à vista
Durante a maior parte do período colonial, o Rio de Janeiro era a porta de entrada de estrangeiros, mas a cidade era pouco conhecida fora do império português. Com a abertura dos portos em 1808, passaram a circular pelo mundo marcos paisagísticos da cidade, como Corcovado, Pão de Açúcar, Igreja da Glória e Morro do Castelo, em pinturas e litografias. Esta internacionalização propiciou trânsito comercial, diplomático, científico e a vinda de artistas, atraídos pela natureza deslumbrante do novo país. Muitos vinham de países de língua alemã.
Neste núcleo está a contribuição desses artistas à formação de uma iconografia do Rio de Janeiro. Durante o século XIX, a cidade se expandiu para além do seu centro antigo e o olhar dos artistas acompanhou o processo com encantamento pela beleza natural e fascínio pelos costumes de uma sociedade em formação. A onipresença da escravidão não escapou à atenção dos pintores.
Retratos da vida da corte
A centralidade da figura do imperador, como chefe de Estado, e da Casa Imperial, como manifestação das relações de poder em torno da corte, gerou um sistema de cerimônia e etiqueta que orientava as relações sociais em todos os níveis, ainda depois da independência, como monarquia parlamentar até 1889.
A concessão de títulos nobiliárquicos e honrarias servia para confirmar o status social e econômico. Os contemplados iam da família imperial a súditos anônimos e duques, marqueses, condes, viscondes, barões, comendadores e dignatário de ordens imperiais.
Neste segmento estão retratos pintados de notáveis. Eles exerceram a função de dar visibilidade à posição social do retratado. Era caro encomendar uma pintura de cavalete, e quanto mais importante o pintor, maior o custo da obra. O mercado local se tornou atraente para artistas estrangeiros especializados em retratos. E eles vieram para o Brasil.
Ferdinand Krumholz passou quase cinco anos no país, pintando retratos da família imperial e da aristocracia. Ernst Papf, estabelecido após 1880 em Petrópolis, se distinguiu por suas fotopinturas, assim como Augusto Stahl e Germano Wanschaffe.
Olhar a gente brasileira
Os artistas do século XIX registraram o cotidiano de uma sociedade ainda afundada nas relações perversas com a escravidão.
A face velada da moeda era a massa escravizada, presente na paisagem humana retratada nos trabalhos deste núcleo. A estranheza do cenário aos olhos dos artistas estrangeiros os moveu a chamar a atenção do mundo para a situação dos escravos, que a sociedade fingia ignorar.
A curadoria considera que “duas grandes perspectivas condicionaram o olhar germânico sobre as populações afrodescendente e indígena no Brasil. A primeira foi o abolicionismo que, embora menos discutido nos países de língua alemã do que na Grã-Bretanha ou na França, dominou sensibilidades europeias desde as primeiras décadas do século XIX. A segunda foi a curiosidade etnográfica, que engendraria esforços de classificação racial, embasados por um racismo pseudocientífico. As obras de Thomas Ender, Johann Moritz Rugendas e o Barão de Löwenstern, entre outros artistas, se equilibram no conflito entre essas perspectivas, temperado pelo gosto romântico do pitoresco. A tensão entre essas forças faz delas um rico manancial para compreender a formação da gente brasileira, assim como o modo como o país era percebido no restante do mundo”.
Imaginar o Brasil
A circulação internacional de livros, estampas, panoramas e álbuns de vistas deste segmento evidenciou a contraposição entre uma Europa civilizada e o suposto exotismo do resto do mundo. O imaginário que se formou da natureza tropical, selvagem e indomável, passou a confrontar uma ideia de domesticidade e civilidade como marcas de pertencimento cultural.
A concepção da vida europeia como norma impactou também o brasileiro, que consumia esses mesmos produtos culturais. O olhar estrangeiro oferecia uma lente para os brasileiros que quisessem enxergar a imensidão do Brasil. Assim, a população mais abastada veio a perceber seu próprio país a partir de hipóteses e preconceitos distantes da experiência vivida.
O olhar do colecionador
Maria Cecilia e Paulo Geyer passaram quatro décadas a coletar, em casas de leilões mundo afora, pinturas, gravuras, desenhos, mapas, livros de viagem e objetos de arte para criar a Coleção Geyer.
A doação integral do conjunto e da casa que o abriga a uma instituição pública [Museu Imperial], formalizada em 1999, é exemplar de altruísmo e caráter social e merece ser sempre lembrada e festejada.
Esta sala se dedica a invocar o espírito do casal de filantropos e recordar um ambiente da casa em que viveram durante tantos anos.
A mais nobre função do colecionador é juntar fragmentos dispersos pelo tempo e dar sentido a eles, formando um conjunto que opera como uma obra maior. Compete ao público decifrar os enigmas propostos pela intuição do casal Geyer ao constituir sua coleção.
Na opinião dos curadores, “ao observarmos com consciência do olhar dos colecionadores, não somente prestamos uma justa homenagem, como também aprendemos a enxergar os objetos aqui expostos com a paixão e a inteligência de quem os recuperou do esquecimento. Essa educação do nosso olhar pelos olhares que nos antecederam é essencial para construirmos uma cultura em comum”.
Homenagem a Petrópolis
Completam a mostra objetos produzidos por artistas germânicos radicados em Petrópolis, como as esculturas de madeira de Carlos Spangenberg – suas bengalas, chamadas de “Petrópolis”, eram apreciadas por D. Pedro II. Copos e pesos de papel de vidro e cristal lapidados por Henrique e Guilherme Sieber, que eram os souvenirs mais procurados pelos turistas e vilegiaturistas que visitavam Petrópolis. As peças destes artistas e mais as pinturas de Karl Ernest Papf e de Friedrich Hagedorn, pertencentes à coleção do Museu Imperial, estarão lado a lado com itens da Coleção Geyer, como paisagens da cidade serrana e seus arredores. É uma homenagem da curadoria a Petrópolis, tão afetada pelas chuvas recentes.
Patrocínio [através da Lei de Incentivo Fiscal]
O Olhar Germânico na Gênese do Brasil tem patrocínio da Unipar, hoje fabricante de cloro, soda e PVC, cuja origem, a Refinaria União, foi fundada por Alberto Soares de Sampaio, pai de Maria Cecília Geyer, como refinaria de petróleo. Seu genro Paulo Geyer se tornou sócio de Alberto neste negócio. Após a morte de Geyer em 2004, seu neto Frank Geyer Abubakir entrou para o conselho da empresa, representando os herdeiros. Em 2008, Frank se tornou chairman e atualmente é presidente do conselho da Unipar.
“A visão da minha família sobre a importância do fomento à cultura e da preservação da memória do país é um legado para mim, que busco perpetuar. Mas sobretudo tem sido parte da cultura da própria Unipar, empresa que minha família lidera há mais de 50 anos, e que tem contribuído imensamente com apoio a projetos artísticos como a exposição e o livro O Olhar Germânico na Gênese do Brasil”, celebra Abubakir esta contribuição ao nosso capital cultural.
Catálogo-livro A mostra é acompanhada por uma publicação de 240 páginas, com 160 imagens e textos dos historiadores de arte Lucile Magnin, Fabriccio Miguel Novelli Duro, Fábio d’Almeida, Amanda Tavares e Vitor Gomes, além do dos curadores Maurício Vicente Ferreira Júnior e Rafael Cardoso.